capitulo 4

 

A Grande Loja do Missouri e a Canonização das Old Charges como Landmarks (1850)

No ano de 1850, a Grand Lodge of Missouri, uma das jurisdições maçônicas dos Estados Unidos mais influentes no período da expansão territorial americana, tomou uma decisão singular: adotou oficialmente as “Old Charges” como seus Landmarken, conferindo-lhes um caráter normativo e quase sagrado. Este movimento, ao mesmo tempo conservador e inovador, inscreve-se no esforço mais amplo, típico do século XIX, de sistematizar, consolidar e codificar a identidade maçônica em um contexto de pluralidade e rápida transformação social.

As Old Charges, também conhecidas como Ancient Charges, são uma coleção de manuscritos maçônicos que remontam ao final da Idade Média e ao início da modernidade. Os mais conhecidos são os manuscritos Regius (c. 1390) e Cooke (c. 1410), seguidos por inúmeras versões que se difundiram entre os séculos XVI e XVIII. Esses textos continham narrativas lendárias sobre a origem da Maçonaria, regras de conduta moral, obrigações de lealdade, exigências éticas para os membros e normas para a convivência nas Lojas.

Ao elevar as Old Charges ao status de Landmarken, a Grande Loja do Missouri promoveu uma espécie de canonização histórica, transformando textos de caráter instrucional e consuetudinário em princípios fundamentais, imutáveis e universais para a prática maçônica. A decisão, portanto, é simbólica em vários níveis:

  1. Histórico – Ao reconhecer as Old Charges como Landmarks, a Grande Loja reforça a continuidade da Maçonaria moderna com suas raízes operativas medievais, legitimando a tradição especulativa pela ancestralidade.

  2. Jurídico – A elevação das Charges ao status de Landmark implica que nenhuma jurisdição ou Loja teria o direito de modificá-las, contrariá-las ou ignorá-las, pois estariam no cerne da constituição da Ordem.

  3. Político – Em meio a um cenário norte-americano marcado pela proliferação de Grandes Lojas e interpretações divergentes da tradição maçônica, a decisão da Missouri buscava afirmar sua autoridade doutrinária e consolidar um modelo conservador frente a correntes mais inovadoras ou liberais.

É importante observar que, até então, os Landmarks não eram definidos de maneira consensual nas diversas jurisdições maçônicas. Em muitos casos, como o da Inglaterra, nem sequer havia uma enumeração formal. A iniciativa da Grande Loja do Missouri antecipa os esforços posteriores de Albert Mackey (1858) e Roscoe Pound (1911) de definir e classificar os Landmarken com base em critérios históricos, simbólicos e jurídicos. Contudo, diferentemente desses autores, a Grande Loja do Missouri optou por um critério de autoridade tradicional: se os antigos manuscritos orientaram a prática durante séculos, deveriam ser mantidos como pilares imutáveis da Ordem.

Essa sacralização das Old Charges levanta, no entanto, algumas questões interpretativas. Os manuscritos não apresentam uniformidade de conteúdo; muitos deles foram adaptados, editados e até contraditórios entre si. Há elementos teológicos, morais e sociais que refletem contextos específicos – como a obrigatoriedade da fé cristã trinitária, a lealdade ao rei ou o papel subordinado das mulheres –, que são difíceis de conciliar com os princípios de universalismo e liberdade religiosa que a Maçonaria moderna veio a adotar.

Ainda assim, ao declarar as Old Charges como Landmarken, a Grand Lodge of Missouri reforça um modelo maçônico ancorado na tradição, na autoridade dos manuscritos antigos e na fidelidade a uma identidade ritualística e moral transmitida ao longo dos séculos. Trata-se de um gesto de resistência à mudança e de defesa de uma ortodoxia maçônica, num tempo em que a Maçonaria norte-americana começava a se diversificar em ritos, interpretações simbólicas e abordagens filosóficas.

A escolha de Missouri não foi amplamente seguida por outras Grandes Lojas dos EUA, mas marca uma etapa crucial na disputa pela definição dos Landmarks no século XIX, servindo de precedente para debates posteriores sobre quais princípios são realmente essenciais e inalteráveis na Maçonaria. Seu legado permanece como um exemplo claro da tensão entre tradição e adaptação, entre a herança manuscrita e a necessidade de codificação moderna.

Comentários